São 4h00 da madrugada. Há 37 já ia a caminho de Lisboa integrado na coluna da EPC comandada pelo capitão Salgueiro Maia. Era um simples alferes-miliciano chegado de uma comissão de 2 anos em Angola. Estava perfeitamente a leste das movimentações militares, intentonas, revoluções e tudo o mais porque nunca liguei à política e muitos menos politiquices. Nunca tinha ouvido sequer falar no MFA. Ouvia obviamente desabafos dos mais rebeldes mas nunca liguei. Só tomei conhecimento que ia haver "qualquer coisa" quando saí do quartel de Santarém para ir jantar fora e fui abordado por um tenente que me disse: "Nosso, alferes, logo à noite a unidade vai marchar sobre Lisboa para fazer um golpe de Estado. Você alinha?". Respondi imediatamente que sim. O meu gosto por aventuras poderia lá perder algo assim...
Fui jantar com uma amiga minha que morava perto de Santarém e só depois comecei a pensar seriamente sobre o assunto. "Um golpe de Estado? Nem perguntei ao tenente se era algum movimento de extrema-direita do general Kaúlza de Arriaga ou do general António de Spinola, mais liberal. Que se lixe. Logo se vê".
Quando cheguei ao quartel não notei nenhum ambiente diferente das outras quartas-feiras, dia de instrução nocturna.
As movimentações começaram a notar-se mais frenéticas depois do capitão Maia dar ordem de prisão ao comandante da unidade. Os furriéis acordaram os instruendos e cadetes e toda a guarnição formou na parada. Foi então que o capitão Salgueiro Maia proferiu a histórica frase: "Há os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que isto chegou" e depois a pergunta "Quem quer vir para Lisboa que dê um passo em frente". À excepção da esmagadora maioria dos sargentos todos quiseram avançar sobre a capital. Os recrutas do 2º turno de 1974, alguns do 1º turno, mais alguns oficiais e furriéis ficaram de guarda ao quartel e os restantes recolheram à prisão.
Na parada roncavam os motores das AML, EBR Panhard, Berliet, Chaimite, Unimog e jipes à espera do sinal de saída que aconteceu por volta das 03h00 da madrugada. O material era obsoleto, a maioria dos carros não disparavam e havia dificuldades nas comunicações. Vim "encaixotado" numa velha Panhard francesa da Guerra da Argélia mas chegámos ao Terreiro do Paço sem problemas de maior antes da 06h00 da madrugada. Passámos por alguns polícias que nos olhavam espantados e desandavam rapidamente. As viaturas e o pessoal tomou posições naquele amplo espaço. Os ministérios, o Banco de Portugal, a Marconi e o Governo Civil estavam cercados. "Toledo", nome de código do Terreiro do Paço, era nosso.
A primeira situação melindrosa aconteceu quando uma coluna fiel ao governo oriunda de Cavalaria 7 comandada pelo alferes David e Silva apareceu para proteger os ministérios. O capitão Maia foi rápido na decisão de colocar o oficial "inimigo" entre a espada e a parede e perante o cenário aderiu ao Movimento e colocou as viaturas em posição na Ribeira das Naus. A PSP da esquadra ali perto nem piou e começou a afastar o trânsito daquele local e as viaturas "nivea" serviram de protecção aos nossos soldados.
Às 09h00 a fragata "Gago Coutinho" ancorou mesmo à nossa frente com ordens para nos bombardear. Era um caso bicudo se o fizesse. O comandante Louçã, pai do Francisco Louçã, do Bloco de Esquerda, nunca deu a ordem de abrir fogo. Disse-me, posteriormente, um alferes amigo da Escola Prática de Artilharia, de Vendas Novas, que eles já estavam posicionados no Cristo-Rei com os canhões apontados ao navio.
Eu andava com a maldita G-3 que odiava porque em Angola só utilizava a fiável e infalível AK-47 e em Santarém não havia nenhuma que pudesse trazer.
Logo a seguir um novo susto. Chegaram os blindados pesados M-47 de Cavalaria 7 e uma coluna da Polícia Militar sob a ordens do brigadeiro Junqueira dos Reis. O poder de fogo deles era infinitamente superior ao nosso. Se disparassem o 25 de Abril acabava ali. O brigadeiro manda disparar mas o alferes Sottomayor recusa-se a obedecer. Vira-se para os soldados mas estes também não abrem fogo. Um sentimento de alívio percorreu-nos o corpo e a alma. Por pouco tempo. O major Pato Anselmo, de Cavalaria 7, manda avançar os M-47. Valeu a decisão do major Jaime Neves que lhe saiu ao caminho e berrou-lhe: "Ó pá, não sejas parvo, vira lá essa merda (os canhões) para o outro lado". O major Pato Anselmo hesita mas uma pistola apontada à barriga fá-lo render. Mais um obstáculo ultrapassado.
Na Rua do Arsenal a coisa está preta. O brigadeiro Junqueira dos Reis volta à carga. O capitão Maia manda o tenente Assunção dialogar com ele mas leva duas estaladas do comandante inimigo. O capitão Maia mete uma granada no bolso e vai lá sozinho. O brigadeiro manda disparar. Não lhe obedecem e passam-se para o nosso lado. Outro momento dramático ultrapassado.
A coluna da Escola Prática de Cavalaria sobe em direcção ao Largo do Carmo. Eu vou pelo lado do Cais do Sodré e encontro um soldado de Lanceiros 2 deitado na paragem do eléctrico com uma HK-21. Quando passo por ele o soldado interpela-me: "Meu alferes, porra, afinal de que lado é que estou? Ninguém me diz nada ! Daqui a bocado apanho o barco e vou para a terra". Ainda hoje me rio com essa cena. Respondi-lhe: "Estás do meu lado. Vem comigo!".
Marcello Caetano refugiou-se no Quartel do Carmo e agora está cercado pelas forças da EPC. Então o raio do teimoso do brigadeiro Junqueira dos Reis com umas forças de Cavalaria 7, mais a Polícia de Choque, uma companhia de Infantaria da GNR e uma companhia de Infantaria 1 cercam-nos a nós. Pior. Um helicanhão sobrevoa a zona e pode causar um massacre entre soldados e multidão antes de ser abatido pelas nossas 12,7 Browning. O Regimento de Cavalaria 3 chega finalmente de Estremoz e cercam as forças que nos estavam a cercar. Foi um alívio tremendo.
O capitão Maia insiste na rendição do Quartel do Carmo e ameaça abrir fogo com a Panhard e rebentar com aquilo tudo. Eu era dos que concordavam com a destruição mas acima de mim havia muito mais gente a comandar. Por fim, um pelotão de atiradores sobe uns andares no prédio em frente e dispara apenas armas ligeiras que esburacam a fachada. Durante 5 minutos a malta despeja os carregadores sobre o prédio. A multidão foge e protege-se. Felizmente não há baixas entre os civis.
Finalmente chegam uns negociadores para falarem com Marcelo Caetano, que decide entregar o poder ao general António de Spínola. O capitão Maia acompanha o general à presença do presidente do Conselho, Pouco depois sai, prisioneiro, na Chaimite Bula. A PIDE, na António Maria Cardoso, abre fogo sobre a população e mata 4 pessoas e fere 45. Aquele objectivo fora descurado, nunca soube porquê. Ou melhor, desconfio, mas não tenho provas. Acorremos juntamente com elementos da Marinha e de Infantaria e acabamos com a sinistra polícia política.
A Caxias chegam os pára-quedistas para libertarem os presos políticos, apesar da resistência da PIDE e da insatisfação do general António de Spínola. Já noite dentro atirei com o raio da G-3 para dentro da Panhard e fiquei apenas com a Walther. No dia seguinte houve um incidente com a Polícia de Choque mas um Fuzileiro acabado de chegar da Guiné abriu o tipo ao meio com uma HK-21. Assunto encerrado. À terceira noite finalmente lá consegui dormir. A aventura terminara.