A 1ª página do "Record" sobre a tragédia
Angola 1991. Regresso a África. Em paz e como civil. Julgava eu mas estava enganado. Fui em trabalho, fazer a reportagem de dois jogos de futebol entre Angola e a selecção de Sub-21 de Portugal. Aquele novel país africano comemorava os seus tenros 16 anos de independência entre uma terrível guerra civil. Uma breve e delicada paz coincidiu com este período da nossa deslocação a Angola. A destruição e a morte entre o MPLA apoiado por Cuba e a UNITA com a ajuda da África do Sul desenrolava-se há anos e continuaria anos depois. Ao abrir-se a porta do avião respirei de novo o calor húmido e sufocante de África. A comitiva portuguesa, liderada pelo eng. Azevedo Félix e Paes do Amaral, ambos vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol, foi excelentemente recebida pelo comandante França, um conhecido ex-guerrilheiro que deu uns toques no Sporting antes de eclodir a Guerra Colonial.
Muitos jogadores famosos na equipa portuguesa: Brassard, Nelson, Abel Xavier, Valido, Paulo Torres, Hélder, Secretário, João Pinto, Filipe, Paulo Alves, Gil, Paiva, João Pires, Amaral, Mário Jorge, Tó Ferreira, quase todos eles campeões mundiais de sub-20 em Riad, Arábia Saudita (1989) e Lisboa (1991).
A minha foto de enviado-especial à "confusão"
De Luanda fomos para o Humabo, a antiga Nova Lisboa, naquela altura a frente de guerra mais sangrenta do mortífero conflito angolano. A cidade encontrava-se praticamente destruída em cerca de 70-80 por cento. Os dois poderosos exércitos encontravam-se frente a frente. Passeis diversas vezes pela frente das bocas dos canhões dos tanques T-72, dos canhões, dos canos múltiplos dos temíveis "órgãos de Estaline" ou "katiuscha". Corri toda a cidade com os meu camaradas de profissão Carlos Rias e João Afonso. Víamos pouco mais que ruínas. Até o Clube dos Ferroviários, que fora um dos lugares preferidos da elite antes da independência estava em muito mau estado devido aos furiosos combates que ali se verificaram.
Durantes o Angola-Portugal, no Huambo, o estádio fervilhava de gente ávida de ver uma equipa portuguesa. A garotada, e não só, trepava pelos muros do estádio, pendurava-se no autocarro, mesmo com a Polícia a vergastá-los e a disparar armas para o ar.
Depois do jogo uma trovoada deixou a cidade na mais completa escuridão. Eu precisava de mandar a reportagem para Lisboa. No meio daquelas ruínas seria um milagre encontrar algo que funcionasse. Encontrei. Um velho português dos tempos coloniais, com uma loja de moderníssimas moto 4 aberta era um oásis no deserto. Mandei o trabalho através de um último modelo de faxe. Ironias da guerra. De todas as guerras. Há sempre um pouco de vida entre tanta morte.
A 1ª página do "Record" com um morto do tiroteio
Vinha para a pensão sem qualquer condições onde nos encontrávamos hospedados, às escuras, sem ver um palmo à frente dos olhos, quando me lembrei que aquele espaço de terra revolvida devia estar minado. Aí valeu-me a experiência militar e com a caneta fui "picando" o terreno à minha frente. Por duas vezes a caneta da qual dependia a minha vida encontrou "alguma coisa". Desviei-me. Demorei três ou quatro horas para percorrer menos de um quilómetro.
O hotel tinha uma discoteca aberta. Onde há guerra há mulheres. Muitos militares angolanos e civis a conviverem com os elementos da comitiva portuguesa. Encontrei um capitão do MPLA que tinha sido cabo do Exército Português na Guerra Colonial. Conversámos durante muito tempo, amiúde interrompidos por esbeltas negras que convidavam para o "truca-truca" sem qualquer rodeio.
No dia seguinte dei uma última volta pela cidade. Com uma estranha companhia. Um piloto de helicópteros russos que apoiavam o MPLA. Fartá-mo-nos de falar. Uma "conversa" de doidos. Só percebia "Yuran", "Kulkov", "Mostovoi", três compatriotas dele que na altura actuavam no Benfica. Mostrou-me o helicóptero Kamov e como funcionava. Agradeci-lhe.
De volta a Luanda, o velho Boeing 737 borregou por três vezes a descolagem. Por pouco não se espatifava na floresta no final da pista. A rodear o traço de alcatrão viam-se inúmeros "cadáveres" de aviões e helicópteros vítimas da guerra civil. O superlotado Boeing com mulheres com cestos à cabeça, miúdos às costas, cabras e galinhas histéricas era uma cena digna de um filme de Felini. Os pilotos riam-se e acenavam para os mecânicos (seriam?) enfiados no capot de um dos reactores. Os gestos entre eles não auguravam nada de bom para o voo. Aí sentei-me, entreguei a alma ao Criador, eu que até nem sou crente, agarrei uma escultural hospedeira e como ela simpatizou comigo deu-me uma garrafa de uísque. Emborquei metade quase de um trago. Se fosse desta para melhor pelo menos ia satisfeito e "alegre".
À quarta tentativa o avião levantou. Sabe-se lá como. Aos soluços e aos solavancos lá chegámos a Luanda.
A minha foto e uma foto do jogo, com Filipe na imagem
Aí estávamos muito melhor instalados.
Dei umas belas voltas pela Cidadela, Bairro de Alvalade, Ilha, Mussulo e até me enfiei pelos intermináveis musseques, guiado por um condutor de um "chapa" com menos juízo que eu...
Aí verifiquei a terrível desigualdade entre o faustoso Palácio do Futungo de Belas, residência do presidente José Eduardo dos Santos, e os miseráveis que se arrastavam pelos mercados Roque Santeiro e Fim do Mundo. Um pecado original do qual Angola demorará muito tempo a redimir-se.
No segundo jogo a tragédia aconteceu. E poderia ter sido muito pior. Decorria o encontro há poucos minutos quando ouvi o familiar matraquear de uma AK-47 dentro do estádio. Segundos depois o tiroteio aumentou de intensidade proveniente de várias armas. A minha reacção foi proteger-me atrás de um muro, como qualquer ex-militar o faria. Os meus colegas continuavam sentados e desprotegidos. "Vocês estiveram na tropa, caraças?", perguntei-lhes. Ouvia as balas a estrelejarem ao baterem nas bancadas de cimento do velho Estádio dos Coqueiros. "Não", responderam-me. "Baixem-se, seus car@lhos, se não vão com os porcos", berrei-lhes. Encontrava-me nos velhos tempos da tropa e isso manteve-me sempre alerta com o evoluir dos acontecimentos.
Os jogadores portugueses preocupavam-se. Os angolanos, habituados à guerra, deitaram-se todos no relvado. Desci as escadas a correr para ir ter com os jogadores nacionais. O Brassard, o Paulo Torres, o Valido e o Hélder não foram atingidos por mero acaso. Estavam na linha de fogo quando se iniciou o tiroteio e não morreram por acaso. Eu era o único português com experiência militar entre a comitiva. Mandei os jogadores para o buraco do banco dos suplentes, afastei os dirigentes portugueses e falei com o comandante das forças angolanas presentes no estádio.
As páginas interiores da reportagem e um 25 de Abril desconhecido...
Um homem estava morto no chão e havia vários feridos. O comandante das forças da ordem e o presidente da Federação Angolana de Futebol garantiram-me que o incidente estava sanado. "Ok, então vamos esperar meia hora para ver se está tudo calmo". Na altura eu era o "general" intermediário entre portugueses e angolanos. O comandante angolano puxou-me para o lado e disse-me que o trágico incidente tinha sido originado por um Polícia Militar angolano que não gostou de ser revistado à entrada do estádio por elementos de uma unidade rival e sacou a espingarda-metralhadora AK-47 das mãos de um compatriota e começou a disprar sobre tudo e todos aaté ser abatidos por outros militares presentes.
O presidente da Federação Angolana de Futebol pediu-me por tudo para não publicar os incidentes na reportagem mas eu respondi-lhe que como jornalista era obrigado a fazê-lo. Ele compreendeu e todos me trataram com a maior urbanidade. E o jogo lá recomeçou com uma bola ao solo. São estranhas e frias estas regras do Futebol.
À noite regressámos a Lisboa. No avião, a adrenalina descarregou e depois de comer bem e beber melhor adormeci tão profundamente que a hospedeira teve de me acordar já a aeronave aterrara e quase toda a gente saíra.
África proporcionara-me mais uma aventura inesquecível No entanto, os angolanos foram impecáveis comigo e no meio de todas aquelas peripécias ainda nos divertimos imenso. Especialmente no Mussulo...(Segredo de estado...)